Lugar da Doutrina de Deus na Dogmática.

As obras de dogmática ou de teologia sistemática geralmente começam com a Doutrina de
Deus. A opinião prevalecente tem reconhecido sempre este procedimento mais lógico, e ainda
continua apontando na mesma direção. Em muitos casos, mesmo aqueles cujos princípios
fundamentais pareceriam exigir outro arranjo, continuam na prática tradicional. Há boas razões
para começar com a Doutrina de Deus, se partirmos da admissão que a Teologia é o
conhecimento sistematizado de Deus de quem, por meio de quem, e para quem são todas as
coisas. Em vez de surpreender-nos de que a dogmática comece com a Doutrina de Deus, bem
poderíamos esperar que seja completamente um estudo de Deus, em todas as suas ramificações,
do começo ao fim. Como uma questão de fato, é isto exatamente o que se pretende que seja,
embora somente o primeiro locus ou capítulo teológico trate diretamente de Deus, enquanto que
as partes ou loci subseqüentes tratam dele de maneira mais indireta. Iniciamos o estudo de
teologia com duas pressuposições a saber: (1) Que Deus existe; (2) Que Ele se revelou em Sua
Palavra divina. E por esta razão não nos é impossível começar com o estudo de Deus. Podemos
dirigir-nos a Sua revelação para aprender o que Ele revelou a respeito de Si mesmo e a respeito
de Sua relação para com as Suas criaturas. Têm-se feito tentativas no curso dos tempos para
distribuir o material da dogmática de tal modo que exiba claramente que ela é não apenas em um
locus, mas em sua totalidade, um estudo de Deus. Isto foi feito pela aplicação do método trinitário,
que dispõe o assunto da dogmática sob os três títulos: (1) O Pai; (2) O Filho; (3) O Espírito Santo.
Esse método foi aplicado em algumas das primeiras obras sistemáticas, foi restaurado ao favor
geral por Hegel, e se pode ver ainda na Dogmática Cristã, de Martensen. Uma tentativa
semelhante foi feita por Breckenridge, quando dividiu o assunto da dogmática em (1) O
Conhecimento de Deus Objetivamente Considerado; (2) O Conhecimento de Deus subjetivamente
Considerado. Nem um nem outro destes podem ser considerados como tendo tido sucesso.

Até o começo do século XIX era quase geral a prática de começar o estudo da dogmática
com a doutrina de Deus, mas ocorreu uma mudança sob a influência de Schleiermacher, que
procurou salvaguardar o caráter científico da teologia com a introdução de um novo método. A
consciência religiosa do homem substituiu a palavra de Deus como a fonte da teologia. A fé na
Escritura como autorizada revelação de Deus foi desacreditada e a compreensão humana,
baseada na apreensão emocional ou racional do homem, veio a ser o padrão do pensamento
religioso. A religião gradativamente tomou o lugar de Deus como objeto da teologia. O homem
deixou de ser ou de reconhecer o conhecimento de Deus como algo que lhe foi dado na Escritura
e começou a orgulhar-se de Ter a Deus como seu objeto de pesquisa. No curso do tempo tornou-
se comum falar do descobrimento de Deus feito pelo homem, como se o homem alguma vez O
tivesse descoberto; e toda descoberta feita nesse processo foi dignificada com o nome de
“revelação”. Deus vinha no final de um silogismo, ou como o último elo de uma corrente de
raciocínio, ou como a cumeeira de uma estrutura de pensamento humano. Sob tais
circunstâncias, era simplesmente natural que alguns considerassem incoerência começar a
dogmática pelo estudo de Deus. Antes é surpreendente que tantos, a despeito do seu
subjetivismo, tenham continuado a seguir a ordem tradicional.

Contudo, alguns perceberam a incongruência e partiram por outro caminho. A obra dogmática
de Schleiermacher dedica-se ao estudo e análise do sentimento religioso e das doutrinas nele
envolvidas. Ele não trata da doutrina de Deus de maneira conexa, mas apenas em fragmentos, e
conclui a sua obra com uma discussão sobre a Trindade. Seu ponto de partida é antropológico, e
não teológico. Alguns teólogos intermediários foram tão influenciados por Schleiermacher que,
logicamente, começaram os seus tratados de dogmática com o estudo do homem. Mesmo nos
dias presentes esta ordem é seguida ocasionalmente. Acha-se um notável exemplo disto na obra
de O. A. Curtis em The Christian Faith. Esta começa com a doutrina do homem e conclui com a
doutrina de Deus. Poderia parecer que a teologia da escola de Ritschl requeresse ainda outro
ponto de partida, desde que encontra a revelação objetiva de Deus, não a Bíblia como na palavra
divinamente inspirada, mas em Cristo como fundador do Reino de Deus, e considera a idéias do
Reino como o conceito central e absolutamente dominante da teologia. Contudo, dogmáticos da
Escola de Ritschl, como Herrmann, Haering e Kaftan, seguem, pelo menos formalmente, a ordem
usual. Ao mesmo tempo, há vários teólogos que em suas obras começam a discussão da
dogmática propriamente dita com a doutrina de Cristo ou da Sua obra redentora. T. B. Strong
distingue entre teologia e teologia cristã, define esta última como “a expressão e análise da
encarnação de Jesus Cristo”, e faz da encarnação o conceito dominante em todo o seu Manual of
Theology.